segunda-feira, 27 de maio de 2013

RT Comenta: DIREITO EMPRESARIAL


Prova: Procurador da República - Concurso 22 (2005)
Tipo: Objetiva
Banca:
Separei a questão de Direito Empresarial abaixo, sobre o tema de títulos de créditos, para tecer alguns comentários. Apesar de ser um pouco antiga, achei-a interessante por permitir a revisão simultânea de vários conceitos indispensáveis no estudo do direito cambiário. Além disso, algumas pessoas me disseram que eu não havia comentado nenhuma questão do MPF, embora já tenha comentado várias de concurso para Juiz Federal. E como eu me esforço para ajudar ao máximo o leitor que prestigia o meu trabalho, eis mais um bom motivo para começar a comentar algumas questões do MPF - sempre de forma absolutamente voluntária e gratuita, pois o GERT não conta com o patrocínio de ninguém, a não ser o meu próprio (risos). 

1 - Questão 64

EM TEMA DE TÍTULOS DE CRÉDITO:

I. chama-se endosso póstumo aquele que sobrevém à morte do endossatário; 

II. o aval é uma garantia pessoal semelhante a fiança mercantil; 

III. no endosso-penhor o endossante entrega o título como garantia de outro negocio;

IV. a cambial em branco pode ser completada pelo credor a qualquer tempo. 

Das proposições acima:

a) ( ) I e IV estão corretas;
 
b) ( ) IIl está correta;

c) ( ) Il e IIl estão corretas;

d) ( ) IV está correta.

No Direito Empresarial, o direito cambiário é o capítulo do subsistema jurídico que se dedica ao estudo do regime jurídico aplicável aos títulos de crédito. E qual o conceito de título de crédito? A doutrina aponta ser o famoso conceito de Cesare Vivante, expressamente adotado no art. 887 do Código Civil: 

Art. 887. O título de crédito, documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei.

Portanto, título de crédito é o documento que representa uma obrigação de caráter pecuniário, de modo a facilitar a circulação da riqueza.

Com base no art. 887 do CC, a doutrina elenca como sendo princípios do direito cambiário brasileiro os seguintes: (1) cartularidade; (2) literalidade; (3) autonomia. De maneira deveras resumida, pode-se dizer que, no regime jurídico cambial adotado no Brasil, o crédito deve necessariamente estar representado em um documento, isto é, na cártula (princípio da cartularidade), sob pena de o credor sem título ficar impedido de exercer seu direito de crédito; exige-se que o direito creditório esteja expressamente escrito no título de crédito (princípio da literalidade); além disso, as obrigações jurídico-cambiais, materializadas no título de crédito, são independentes entre si (princípio da autonomia). 

Feita essa brevíssima revisão da matéria, retomarei cada uma das proposições a partir de agora:

I. chama-se endosso póstumo aquele que sobrevém à morte do endossatário; 

No direito cambiário, existem várias maneiras de classificar os títulos de créditos. Talvez a mais importante delas seja a que os divide pelo critério quanto à circulação, caso em que os títulos podem ser: (a) ao portador (são os títulos que circulam por mera tradição, haja vista não identificarem o credor da cártula); e (b) nominativo (são os títulos que circulam mediante a conjugação da tradição com outro ato jurídico, visto que identificam o credor da cártula). Estes últimos, por sua vez, a depender da cláusula neles inserida, subdividem-se em títulos nominativos à ordem, que são aqueles que circulam mediante tradição mais endosso, ou títulos nominativos não à ordem, que são aqueles que circulam mediante tradição mais cessão civil de crédito.

A explicação acima permite ao leitor concluir que o endosso é o ato cambiário que, juntamente com a tradição (entrega), autoriza a transferência da titularidade do crédito representado na cártula. É, com efeito, o ato típico da circulação cambiária, tanto que, se não não houver indicação expressa de cláusula "não à ordem" no título, a regra é presumir a sua circulação via endosso. É o que determina o art. 11 da Lei Uniforme de Genebra (Decreto 57.663/66):  

Art. 11. Toda letra de câmbio, mesmo que não envolva expressamente a cláusula à ordem, é transmissível por via de endosso.

No tocante aos efeitos cambiais do endosso, é preciso recorrer ao art. 15 da Lei Uniforme, in verbis:

Art. 15. O endossante, salvo cláusula em contrário, é garante tanto da aceitação como do pagamento da letra. O endossante pode proibir um novo endosso, e, neste caso, não garante o pagamento às pessoas a quem a letra for posteriormente endossada.

Segundo esse dispositivo, o endossante responde, simultaneamente, pela existência do crédito como pela solvência (capacidade de pagamento) do devedor. É, assim, diferente da cessão civil de crédito, que acarreta ao cedente uma extensão de responsabilidade menor ao impor que ele responda tão somente pela existência do crédito, conforme os arts. 295 e 296 do CC:  

Art. 295. Na cessão por título oneroso, o cedente, ainda que não se responsabilize, fica responsável ao cessionário pela existência do crédito ao tempo em que lhe cedeu; a mesma responsabilidade lhe cabe nas cessões por título gratuito, se tiver procedido de má-fé.

Art. 296. Salvo estipulação em contrário, o cedente não responde pela solvência do devedor.

Porém, nem sempre o endosso do título produzirá o duplo efeito de responsabilizar o endossante pela existência do crédito e pela solvência do devedor. São hipóteses excepcionais, casos em que o endosso efetuado no título terá apenas o efeito cambial de cessão civil de crédito - o que implica dizer que o endossante responsabilizar-se-á tão só pela existência do crédito.

Nesse sentido, a doutrina aponta duas hipóteses de endosso com efeito de cessão civil de crédito. A primeira delas corresponde ao endosso aposto em letra de câmbio com cláusula "não à ordem" e vem prevista no art. 11 da Lei Uniforme:

Art. 11. Toda letra de câmbio, mesmo que não envolva expressamente a cláusula à ordem, é transmissível por via de endosso.

Quando o sacador tiver inserido na letra as palavras "não à ordem", ou uma expressão equivalente, a letra só é transmissível pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos.

O endosso pode ser feito mesmo a favor do sacado, aceitando ou não, do sacador, ou de qualquer outro coobrigado. Estas pessoas podem endossar novamente a letra.

A segunda delas corresponde àquilo que a doutrina denomina de endosso póstumo. Trata-se do endosso feito após o protesto por falta de pagamento ou feito depois de expirado o prazo fixado para se fazer o protesto por falta de pagamento do título. É o que consta do art. 20 da Lei Uniforme: 

Art. 20. O endosso posterior ao vencimento tem os mesmos efeitos que o endosso anterior. Todavia, o endosso posterior ao protesto por falta de pagamento, ou feito depois de expirado o prazo fixado para se fazer o protesto, produz apenas os efeitos de uma cessão ordinária de créditos.

Salvo prova em contrário, presume-se que um endosso sem data foi feito antes de expirado o prazo fixado para se fazer o protesto.

De acordo com o art. 1º da Lei 9.492/97, protesto "é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida."

Quanto ao protesto por falta de pagamento de uma letra de câmbio, o regime jurídico da Lei Uniforme de Genebra determina que, vencido o título, e não apresentada a letra para pagamento na data fixada, o prazo de protesto começa a correr nos dois dias úteis seguintes ao vencimento (art. 44).   

Em conclusão: como o endosso póstumo não tem nada a ver com a morte do endossatário, a proposição I está errada.

II. o aval é uma garantia pessoal semelhante a fiança mercantil; 

No plano do Direito Civil, a fiança (ou caução fidejussória) é espécie de contrato por meio do qual o fiador (aquele que presta a fiança) assume a responsabilidade pelo cumprimento de obrigação do afiançado (devedor) perante o credor (aquele que contrata a fiança). Trata-se de contrato que estipula uma garantia pessoal, tornando o patrimônio do fiador passível de execução para a satisfação da dívida afiançada.  

Essa característica de se cuidar de garantia pessoal muita vez leva o intérprete mais apressado a confundir fiança com aval. Isso se dá porque aval também implica uma garantia pessoal. No entanto, há diferenças marcantes entre uma e outra figura, a assinalar definitivamente a distinção teórica entre avalista e fiador.   

A esse respeito, cumpre citar que a fiança é um contrato, ao passo que o aval é uma obrigação de efeitos cambiais. Justamente por estar relacionada ao regime do direito cambiário, aval é garantia pessoal que só se aplica aos títulos de crédito, uma vez que o que cabe nos contratos é a fiança.

Como a fiança é uma espécie de contrato que visa a garantir outro contrato, diz-se que se cuida de contrato acessório (segue a sorte do principal). Já o aval representa obrigação cambial autônoma, na medida em que, em observância ao princípio da autonomia, componente do regime do direito cambiário brasileiro, há de reconhecer-se que a obrigação do avalista é autônoma em relação a do avalizado. Tal está expresso no art. 32 da Lei Uniforme de Genebra, senão vejamos:   

Art. 32. O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada.

A sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.

Se o dador de aval paga a letra, fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra.

Por fim, é preciso sublinhar que o regime de responsabilidade de fiança e de aval também difere substancialmente. Pois o contrato de fiança, salvo disposição contratual em sentido contrário, comporta benefício de ordem, de modo que o credor só poderá executar a obrigação inadimplida contra o fiador desde que tenha previamente executado o patrimônio do devedor afiançado. O art. 827 do CC vai ao encontro dessa afirmação:    

Art. 827. O fiador demandado pelo pagamento da dívida tem direito a exigir, até a contestação da lide, que sejam primeiro executados os bens do devedor.

Parágrafo único. O fiador que alegar o benefício de ordem, a que se refere este artigo, deve nomear bens do devedor, sitos no mesmo município, livres e desembargados, quantos bastem para solver o débito.

Entretanto, referido benefício de ordem não existe no regime jurídico-cambiário a que se relaciona o aval. Em tais hipóteses, a responsabilidade do avalista pelo pagamento do título do avalizado é solidária. Assim, reconhecida a solidariedade entre o avalista e o devedor principal, é forçoso concluir que o credor do título não pago poderá executar diretamente o dador do aval, independentemente de ter executado o avalizado antes.  

Dessa forma, considerando-se todas as diferenças entre a obrigação cambial do aval e o contrato civil de fiança, é incorreto afirmar que o aval é uma garantia pessoal semelhante à fiança, motivo pelo qual a proposição II está errada.

III. no endosso-penhor o endossante entrega o título como garantia de outro negocio;

Vimos que endosso é o ato jurídico de efeitos cambiais que, uma vez conjugado à tradição do título (princípio da cartularidade), permite a transferência do crédito endossado (para ser mais preciso, do título de crédito nominativo à ordem).

Mas essa alienação do crédito materializado em um título cambial mediante endosso nem sempre produz o efeito que lhe é próprio. De fato, a doutrina aponta a existência de pelo menos dois tipos de endosso:

a) endosso próprio (ou translativo): é aquele que efetivamente transfere a titularidade do crédito endossado;

b) endosso impróprio: é aquele que não transfere a titularidade do crédito, prestando-se apenas a legitimar a posse da cártula por um terceiro.       

Em se tratando de endosso impróprio, a doutrina ainda o divide em duas subespécies, a saber:

1) endosso-mandato: é o ato cambiário que tem por objetivo legitimar a posse da cártula pelo procurador do credor, autorizando o mandatário a praticar atos jurídicos de cobrança em nome do titular do crédito. Ele está previsto no art. 18 da Lei Uniforme: 

Art. 18. Quando o endosso contém a menção "valor a cobrar" (valeur en recouvrement), "para cobrança" (pour encaissement), "por procuração" (par procuration), ou qualquer outra menção que implique um simples mandato, o portador pode exercer todos os direitos emergentes da letra, mas só pode endossá-la na qualidade de procurador.

Os coobrigados, neste caso, só podem invocar contra o portador as exceções que eram oponíveis ao endossante.

O mandato que resulta de um endosso por procuração não se extingue por morte ou sobrevinda incapacidade legal do mandatário.

2) endosso-caução (ou endosso pignoratício ou endosso-penhor): é o ato cambiário que tem por objetivo a constituição de penhor sobre o título de crédito. Como o penhor é um direito real de garantia, no endosso-caução o endossante não está a transferir a titularidade do crédito ao endossatário, mas apenas a garantir, mediante o empenho de um bem móvel (no caso, o título de crédito), a satisfação da dívida. Ou seja, o endosso-caução converte o endossatário em credor pignoratício (credor do penhor), de modo que, tão logo seja adimplida a obrigação onerada pelo penhor, deve o título retornar à posse do endossante - que, repito, não transferiu a titularidade do crédito pelo penhor da cártula. Vejamos, nesse sentido, o que dispõe o art. 19 da Lei Uniforme:   

Art. 19. Quando o endosso contém a menção "valor em garantia", "valor em penhor" ou qualquer outra menção que implique uma caução, o portador pode exercer todos os direitos emergentes da letra, mas um endosso feito por ele só vale como endosso a título de procuração.

Os coobrigados não podem invocar contra o portador as exceções fundadas sobre as relações pessoais deles com o endossante, a menos que o portador, ao receber a letra, tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor.

Por tudo isso, é correto dizer que, no endosso-penhor, o endossante entrega o título como garantia de outro negócio, motivo pelo qual está correta a proposição III.
 
IV. a cambial em branco pode ser completada pelo credor a qualquer tempo. 

Debruçando-se sobre a Lei Uniforme de Genebra, os arts. 1º e 2º apresentam os requisitos essenciais para a emissão de uma letra de câmbio válida. Reproduzirei a seguir a redação literal desses dispositivos para o leitor:   

Art. 1º. A letra contém:

1. a palavra "letra" inserta no próprio texto do título e expressa na língua empregada para a redação desse título;

2. o mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada;

3. o nome daquele que deve pagar (sacado);

4. a época do pagamento;

5. a indicação do lugar em que se deve efetuar o pagamento;

6. o nome da pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga;

7. a indicação da data em que, e do lugar onde a letra é passada;

8. a assinatura de quem passa a letra (sacador).

Art. 2º. O escrito em que faltar algum dos requisitos indicados no artigo anterior não produzirá efeito como letra, salvo nos casos determinados nas alíneas seguintes:

A letra em que se não indique a época do pagamento entende-se pagável à vista.

Na falta de indicação especial, o lugar designado ao lado do nome do sacado considera-se como sendo o lugar do pagamento, e, ao mesmo tempo, o lugar do domicilio do sacado.

A letra sem indicação do lugar onde foi passada considera-se como tendo-o sido no lugar designado, ao lado do nome do sacador.

Como se vê, a lei impõe o preenchimento desses requisitos quando da emissão de uma letra de câmbio, sob pena se o título ser destituído dos efeitos cambiais que lhe são próprios (não produzir efeito como letra) ou, pelo menos, ser considerado pagável à vista (caso da letra de câmbio emitida sem a indicação da data do vencimento).

A jurisprudência, todavia, abriu uma exceção ao dever de o emitente satisfazer os requisitos dos arts. 1º e 2º da Lei Uniforme. Trata-se da letra emitida com omissões (incompleta) ou em branco, caso em que o título não necessariamente será considerado inválido. Vejamos o enunciado 387 da súmula de jurisprudência do STF:  

STF, Súmula nº 387 
A cambial emitida ou aceita com omissões, ou em branco, pode ser completada pelo credor de boa-fé antes da cobrança ou do protesto.

Essa ratio decidendi, posto que sumulada pela Corte Suprema brasileira em 1964 (vigente a CF de 1946), continua ainda hoje perfeitamente aplicável. Logo, a letra emitida de forma incompleta, ou sacada em branco, pode vir a ser completada pelo tomador. Esse raciocínio inclusive pode ser estendido a todos os demais títulos de crédito, porquanto haja previsão expressa no Código Civil acerca da possibilidade de emissão incompleta do título de crédito. É o que consta do art. 891 do CC:

Art. 891. O título de crédito, incompleto ao tempo da emissão, deve ser preenchido de conformidade com os ajustes realizados.

Parágrafo único. O descumprimento dos ajustes previstos neste artigo pelos que deles participaram, não constitui motivo de oposição ao terceiro portador, salvo se este, ao adquirir o título, tiver agido de má-fé.

Todavia, note o leitor que o STF, embora admita a validade do título de crédito emitido de forma incompleta ou sacado em branco, condiciona a execução da cártula pelo credor. Duas são as condições que se extraem do enunciado nº 387: em primeiro lugar, o procedimento do credor deve ser de boa-fé (por exemplo, age de má-fé o credor que preenche unilateralmente o título de maneira a impor ao devedor obrigação cambial superior àquela que seria devida se o título não tivesse sido sacado com omissões); em segundo lugar, só é válido completar a cambial antes da cobrança ou do protesto. Ou seja, há um marco temporal para a completação, que é a apresentação para pagamento ou o exercício judicial da cobrança executiva. Portanto, o título que vier a ser completado após a cobrança ou o protesto, consoante o enunciado 387 da súmula do STF, torna-se inválido para efeito cambiais, não se autorizando a execução da cártula em branco ou omissa.    

Diante dessas observações, já se pode notar que é errado afirmar que a cambial em branco pode ser completada pelo credor a qualquer tempo, motivo pelo qual a proposição IV está errada.  

Pois bem, ao leitor que chegou até o final dos meus comentários a essa questão, convido-o a acompanhar-me no remate, assinalando-se que a alternativa correta é a letra B, pois somente a proposição III está correta.

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