sábado, 2 de julho de 2016

RT COMENTA: PROCESSO PENAL - DIREITO AO SILÊNCIO ("NEMO TENETUR SE DETEGERE" E PRINCÍPIO DA NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO)

 
 
 Questão de prova:
 
No Processo Penal brasileiro, ao réu é concedido o direito de mentir?
 
A Constituição Federal de 1988 contém um conjunto de normas dirigentes do Processo Penal. Essas normas visam a assegurar que a persecução penal em juízo não seja executada de qualquer jeito, mas sim de acordo com um elenco de direitos e garantias fundamentais que são próprias de um Estado Constitucional Democrático.  
A partir desse conjunto de direitos fundamentais, a doutrina enfatiza o direito ao silêncio (direito de permanecer calado), entendido como consequência do brocardo latino nemo tenetur se detegere, que preconiza que ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. Esse mandamento também é conhecido doutrinariamente como “princípio da não autoincriminação”.    
A norma que veda a autoincriminação encontra-se positivada, no âmbito do direito interno, pelo art. 5º, LXIII, da Constituição:
 
CF, art. 5º...........
LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.
 
No âmbito do direito internacional, a garantia contra a autoincriminação encontra respaldo jurídico no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966:
 
PIDCP, art. 14.........
3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, a, pelo menos, as seguintes garantias:
[...]
g) De não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.
 
A Convenção Americana sobre Direitos, adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos, em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, também consagrou a garantia que veda a autoincriminação:
 
CADH, Artigo 8º - Garantias judiciais
[...]
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
[...]
g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada;
 
Apesar disso, há notável divergência doutrinária e jurisprudencial em torno da amplitude do direito ao silêncio. Discute-se, com efeito, se o direito de o réu não produzir prova contra si próprio estaria (ou não) a abranger o direito de mentir. Nesse sentido, no plano processual penal, questiona-se: o acusado teria o direito de mentir? Por outras palavras: a mentira do réu estaria resguardada pela ampla defesa no processo penal?
A questão resolve-se mediante a observação do conteúdo do direito ao silêncio no âmbito do princípio do nemo tenetur se detegere. Com efeito, o princípio da não autoincriminação visa a proteger a conduta meramente passiva do acusado, que, assim, não pode ser penalizado ou forçado a auxiliar as autoridades, responsáveis pelo exercício do ius puniendi estatal, na formulação do acervo probatório apto a forjar um juízo de culpabilidade que lhe seja desfavorável. Por outras palavras, o réu, uma vez acusado em processo de natureza criminal, não pode ser sancionado pela sua indisposição em colaborar com os órgãos do aparelho penal do Estado, que vão ao encontro da sua condenação. No limite, o princípio do nemo tenetur se detegere ergue-se como uma barreira ao Estado celerado, que, no passado, não hesitava em valer-se de todo e qualquer expediente intimidativo, para forcejar por abrir o caminho rumo ao juízo condenatório (eram os tempos tétricos da confissão como “rainha das provas” no processo penal). É por esse motivo que são processualmente inadmissíveis quaisquer medidas de violência física ou moral que sirvam para coagir o investigado/acusado/réu a cooperar com o procedimento apurativo de infrações penais. Pelas mesmas razões, o sistema jurídico não pode obrigar a testemunha compromissada (aquela que prestou o compromisso de dizer a verdade em juízo) a responder uma pergunta sobre fato que importe - ainda que remota ou indiretamente - a autoincriminação, tampouco o magistrado pode valorar negativamente o silêncio do acusado (CPP, art. 186, parágrafo único).         
Todavia, é preciso frisar que o direito constitucional ao silêncio não cria um “direito de mentir” para o réu. Ao proteger os acusados em geral contra o dever de proceder à autoincriminação, o princípio do nemo tenetur se detegere não está a configurar um salvo-conduto para que o investigado/acusado/réu possa assumir comportamento incompatível com outros direitos igualmente constitucionais, com o mesmo status jurídico de “fundamentais”.
A chave desse entendimento vem da constatação de que, no Estado Democrático de Direito, não há direitos fundamentais absolutos, porquanto há múltiplos bens jurídicos relevantes no ordenamento, todos merecedores de proteção e com idêntica envergadura constitucional. Consequentemente, os direitos fundamentais são passíveis de restrições.
Com o direito fundamental ao silêncio, no âmbito do processo penal, não é diferente. Trata-se de um direito fundamental de defesa, conexo ao princípio nemo tenetur se detegere, que pode vir a ser restringido diante de outros valores igualmente importantes em uma visão global do ordenamento jurídico. Assim, a norma que protege o réu contra o dever de autoincriminação deve compatibilizar-se com os valores éticos que são prestigiados pela Constituição de 1988, que assenta os fundamentos da República Federativa do Brasil na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e no pluralismo político (art. 1º), mas não os assenta na mentira, na falsidade, no ardil, na adulteração. O próprio texto constitucional, ao disciplinar a comunicação social no País, cita expressamente a necessidade de “respeito aos valores éticos e sociais” (CF, art. 221, IV). Desse modo, o princípio do nemo tenetur se detegere não é o único a reger o comportamento do acusado no processo-crime, que fica submetido, nessa perspectiva, a uma vasta gama principiológica colidente com a admissibilidade de um torpe e antiético “direito de mentir” no processo penal.
Escuda-se tal posição na premissa de que o ordenamento jurídico contempla normas jurídicas (princípios e regras) que tutelam os acusados contra a prática de arbitrariedades e abusos das agências penais do Estado. Busca-se a punição justa, que é aquela que se alcança com o respeito às “regras do jogo”, em homenagem ao sistema de direitos e garantias constitucionais que está na raiz de toda a vida constitucional dos Estados de Direito Democráticos – conclusão aplicável perfeitamente ao Brasil, em face do caráter notadamente garantista com que se apresenta a Constituição de 1988.
Além disso, cumpre salientar que o ordenamento jurídico pátrio abebera-se na Teoria Geral do Processo, a qual, há séculos, está a admoestar os operadores do direito quanto à impossibilidade de permitir-se que indivíduos venham a beneficiar-se da má-fé, da própria torpeza. Isso porque o devido processo legal também deve orientar-se pela boa-fé, sob pena de violar-se o brocardo jurídico clássico segundo o qual nemo turpitudinem suam allegare potest, isto é, ninguém pode alegar a própria torpeza para se beneficiar.
No plano específico do subsistema jurídico criminal, convém ainda recordar que a mentira é penalmente censurada em diferentes tipos penais, a exemplo dos crimes de falso testemunho, denunciação caluniosa, calúnia, autoacusação falsa, a exceção da verdade para afastar o animus diffamandi dos fatos relacionados ao exercício da função pública etc. Todas essas observações estão a demonstrar que o Direito censura condutas imorais e antiéticas, de que é exemplo cabal a mentira. Sendo assim, é induvidoso que a admissão de um “direito de mentir” no processo penal, em favor do réu, estaria a vulnerar o conteúdo moral do direito, bem como os valores éticos que atravessam o ordenamento jurídico brasileiro como um todo.
Forte nesses argumentos, a jurisprudência do STF orienta-se no sentido de que o princípio constitucional da autodefesa (CF, art. , inciso LXIII) não alcança aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial com o intento de ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada pelo agente (CP, art. 307). Vejamos, pois, o acórdão lavrado quando do julgamento do RE 640139/DF (com repercussão geral reconhecida):
 
CONSTITUCIONAL. PENAL. CRIME DE FALSA IDENTIDADE. ARTIGO 307 DO CÓDIGO PENAL. ATRIBUIÇÃO DE FALSA IDENTIDADE PERANTE AUTORIDADE POLICIAL. ALEGAÇÃO DE AUTODEFESA. ARTIGO 5º, INCISO LXIII, DA CONSTITUIÇÃO. MATÉRIA COM REPERCUSSÃO GERAL. CONFIRMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE NO SENTIDO DA IMPOSSIBILIDADE. TIPICIDADE DA CONDUTA CONFIGURADA. O princípio constitucional da autodefesa (art. 5º, inciso LXIII, da CF/88) não alcança aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial com o intento de ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada pelo agente (art. 307 do CP). O tema possui densidade constitucional e extrapola os limites subjetivos das partes.
(STF, Pleno, RE 640139 RG/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 22/09/2011, p. DJe 14/10/2011)
 
O mesmo raciocínio é esposado pelo STJ, consoante se extrai do enunciado 522 da sua súmula de jurisprudência (Terceira Seção, j. 25/03/2015, p. DJe 06/04/2015):
 
 
Conclui-se, então, que a Constituição de 1988, ao prestigiar o direito ao silêncio como parte do direito à ampla defesa, não instituiu um “direito de mentir” do réu. O princípio do nemo tenetur se detegere realiza-se tão somente na autodefesa passiva, isto é, na ausência de um dever processual imposto aos acusados em geral, no sentido de confessar a prática delitiva ou de colaborar ativamente com as agências estatais na elucidação dos fatos incriminadores.
 
PS: A resposta acima foi escrita em coautoria com a amiga e leitora do blogue Alice Cruz.

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